A Dívida


(ao Daniel Francisco)

Partindo do pressuposto de que devemos sempre a alguém qualquer coisa e que os outros nos devem sempre qualquer coisa. Não está em causa uma pretensa salvação da alma mas uma justiça que, a não ser que deixemos descendência, só se realiza com a morte da pessoa. A questão é que a certo ponto nos fartamos de fazer o bem, adiamos o compromisso com o lado escuro da sociedade, talvez pensando em fazer nome. Trabalhar para o nome, como nas sociedades onde a aristocracia fazia impor o estatuto do nome dominando o outro, é qualquer coisa que ainda não morreu. Substitui mesmo a crença na divindade, pois que nesta sociedade competitiva não há espaço para frustrados, falhados, degenerados. O eugenismo que se tenta promover actualmente na sociedade tem raízes antigas e mostra bem como a natureza humana, o que surge aos olhos e aos ouvidos do circunstancial observador, pode ser uma moeda de duas faces: o lado bom e o lado mau. Não pretendemos traçar um retrato da natureza humana tal qual ela é, mas do modo como se apresenta aos nossos olhos. Parece que a nossa sociedade europeia está saindo de um longo sono onde a dádiva regia as sociedades e acordando para uma nova realidade, criada pelos homens, uma sociedade assente em três pilares essenciais: saúde, amor e dinheiro. Esta sociedade tem uma dívida para com o indivíduo ao mesmo tempo que lhe dá liberdade individual. Tudo parece assentar numa gestão racional das energias, não numa gestão sentimental das energias. O amor é objecto banal de satisfação dos instintos mais básicos e então, na cabeça do autor, instala-se o que Nietzsche sublinhava ser o grande objecto de estudo do ser humano: a ruminação. Saúde, amor e dinheiro, é o que se propagandeia nos horóscopos e se olharmos a coisa deste modo parece que a vida humana é só composta destes três assuntos. A natureza humana é perversa no sentido em que se espreme o indivíduo com o fim de que ele realiza estes três objectivos para que não se possa queixar diante da sociedade. Pois eu digo que a sociedade deve muito, imensamente ao indivíduo. Porque em criança lhe promete mundos e sonhos que só com saúde, amor e dinheiro se podem realizar. Ao folhear uma revista de psicologia para o grande público, atente-se no que eles, aqueles que ganham dinheiro com a condição depressiva de outros seres humanos, referem: o sucesso profissional, a frustração social, o tamanho do pénis. Pois o que parece estar em causa é qualquer coisa de social. Ninguém pode viver sem a aprovação ou reprovação dos outros, sem os outros. E nisto há qualquer coisa de fundamental. A nossa identidade constrói-se por referência aos outros. Há os que têm maior necessidade de aprovação social, contando-se entre estes a maior parte dos psicóticos jornalistas televisivos, que fazem perguntas como se não soubessem já a resposta, parecendo gozar com o entrevistado e o grande público. Ao ler a comunicação social vê-se como as pessoas pensam, o que as pessoas querem na realidade saber. E o autor conclui, a meio da vida, que a natureza humana não tem nada de fascinante, é mecânica como qualquer máquina saída da sociedade industrial. Dêem explicações mais ou menos científicas às pessoas que elas logo ficam intrigadas, como se a natureza humana fosse qualquer coisa de insondável. Não, não é, lamento dizer, pois toda a sua curta vida o autor pensava que sim, que era, que as pessoas são interessantes, mas chegou a uma conclusão e esta é de que não podemos ser antropocêntricos, sob pena de atrofiarmos nas nossas funções e tudo em razão das preocupações com os problemas dos outros. Se soubessem o que é ter problemas não pediriam e nisto culpo também a massa popular, mais e mais. Saúde, amor e dinheiro, é isto que as pessoas querem. Não haverá nada de verdadeiramente interessante na natureza humana? Não, e com isto arrisco-me a apanhar uma facada de um fanático idealista um destes dias, ou de um materialista perseguidor de consciências. Antes de desenvolvermos mais a questão dos três pilares da sociedade moderna, contemporânea, pós-moderna ou experimental, voltemos à questão de início, à questão que dá título a este opúsculo. As pessoas simplesmente não querem saber e a isto dá-se o nome de egoísmo. Julgo que devíamos reconsiderar o papel do indivíduo no contexto societal sem perder de vista as liberdades até agora conseguidas. Este meu texto pode ter pouco eco, mas enquanto não trabalho, proponho-me seguir e propor algumas pistas que me parecem serem importantes para quem virá mais tarde pensar na mesma óptica, ou pelo menos se dedique a questões sociais. A dívida de que falo é a dívida do indivíduo para com a sociedade e desta para com o indivíduo. Parece estranho pensar nestes termos, mas para quem se habituou a ter de pagar pelo seu desejo, outra alternativa não lhe resta senão encarar a sociedade deste modo. Gostaria o autor de pensar e compreender a sociedade no seu todo, mas talvez quando a compreendesse como um todo ao fim de algum tempo não lhe sobravam energias para agir em seu proveito. Também não quero eleger a sociedade, conceito abstracto adiantado e alimentado por gerações de mais ou menos especialistas, como o alvo das minhas críticas, como o bode expiatório. Apenas e mais uma vez, desejo compreender o que é verdadeiramente a natureza humana, admitindo que há uma natureza humana como conceito que nos guia nas nossas análises. Quando a criança nasce, tem a seu lado o ambiente maternal e paternal. Faz um percurso mais ou menos escolar, os que têm essa hipótese e dá-se tempo para aquele ser humano descobrir como se desenvencilhar nesta selva de interesses. Porém, dever-se-ia tratar com violência um ser que faz da inocência e receptividade a sua razão de existir? No processo de socialização ignoram-se muitos aspectos e um deles é justamente o carácter perverso da vida humana em sociedade. Talvez devêssemos ser mais realistas e preparar os espíritos para lidar com os cancros da sociedade, com o mal, com aqueles que querem tudo obter por meios licenciosos e perversos. Não há um consenso quanto a estas questões, nem sou eu que vou dar dicas de como os outros podem viver melhor. Para já porque não tenho o enquadramento legal e institucional para o fazer. Apenas possuo a possibilidade de escrever e esta é a minha liberdade. Rilke previa já que esta possibilidade de escrever é um dom das sociedades modernas ao indivíduo, contudo, talvez a tarefa de escrever deva ser mais tida em conta como uma actividade social do que um hábito individual, rodeado de secretismos toscos e massarentos, como o hábito de fumar. E eis-nos chegado à questão da ruminação mencionada por Nietzsche. Ela é a razão da solidão que se instala na nossa sociedade portuguesa, por mais apelos que os jornalistas façam para as pessoas se abrirem com os outros. Simplesmente, as pessoas não se podem abrir, não têm outro remédio senão carregar o fardo dos seus segredos até que a morte as deixe ignoradas por completo. Porque até contar segredos custa dinheiro. Ajuntando à ruminação eu diria que há uma imensa desconfiança nos nossos espíritos. Só à pessoa indicada podemos contar certas coisas. Não nos é dado expormo-nos ao mundo, nas nossas fraquezas e necessidades. Nem é bom que tal aconteça, talvez em detrimento da liberdade de expressão. Porque o que a maioria das pessoas faz é falar dos outros. Raramente ouvi alguém falar de si, como se fizesse parte da sociedade, como se assumisse como suas as culpas dos erros e devaneios, da desrazão dos outros. Raramente ouvi. (continua)

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